Desde ontem me demoro nessa foto
de família. Ali no meio estão meus avós, cercados de um tio e a tia caçula de
um lado, a tia mais velha e minha mãe de outro. Todos riem, minha avó esconde
os dentes. Meu avô é o único fantasma da foto. Minha avó queria ter sido (ido)
antes, mas o danado era ariano e passou na frente.
Desde hoje de manhã, ela cansou
de brincar sem par e se escondeu do mundo. Se afundou nas memórias, nos
rancores, nas vozes de personagens e histórias do passado. Nem reconhece o presente,
nem encontra forças para andar pra frente, nem que seja em pensamento, já que
fisicamente não o faz sozinha há mais de 10 anos.
Desde pequena carrego um pedaço
desse poço fundo que é a minha avó comigo. Sempre preferi meu avô, mais
bonzinho e ativo, menos intenso. Luto bastante contra o inverno, a melancolia e a
intensidade com que encaro as experiências que a vida me oferece. Chamo meu
filho de dramático, mas ele tem a quem puxar.
Desde adolescente escondo minha
avó na escrita. Era ela nos diários chorosos, nas redações piegas para agradar
professoras, nas tentativas poéticas frustradas, nos contos com crianças, na
dupla personalidade da Beta e até na carência dos personagens masculinos do
segundo livro. Procure de perto, não sei esconder bem.
Desde que minha mãe me ligou da
casa da minha avó, tento pensar em como trazer ela à tona. Ela é pesada e o
poço é quentinho, que bem sei. Sugeri cócegas e beliscões, mas ela continua
catatônica. Penso se eu, que tanto sei entrar e sair dele, não devia ir até lá procurar
a sua mão. Lá onde, cara pálida? Bem podia existir um skype emocional para conectar o meu poço com o dela, por um número que estivesse na cadeia do nosso DNA. Você pisca o
olho se receber o meu sinal, vó, e eu prometo dizer só coisas boas? Posso
cantar um pouco a música de Maria, que saía da vitrolinha vermelha enquanto
você lavava o quintal com a vassoura de piaçava: “Olhe o que foi meu bom José,
se apaixonar, pela donzela...” Ou recitar a primeira palavra que você me ouviu
dizer e não se cansava de contar: “Batauta”. Te contar que meu filho está
fazendo tricô e perdendo os pontos como eu perdia quando tinha 10 anos e passava
as férias em Chavantes. Dizer que lembro de você toda vez que como um bis
porque cada neto seu ganhava uma caixa e a recomendação de comer com calma para
durar bastante. Eu bem tentava, vó, mas o Brê e a Gabi comiam os deles e os
meus. Evocar o aroma dos scones que você fritava e escondia para o Natal, ou das
galinhas que depenava e passava no fogão, credo. Confessar que roubei as cartas de
amor que meu avó mandou para você no noivado e estavam guardadas dentro de uma
latinha de biscoitos enferrujada e que são lindas de chorar e respeitosas e
feitas de um amor que eu nunca encontrei na vida. E dizer obrigada por esse
caldo emocional, pegajoso, brega, chato e criativo que herdei de você. Fica mais um
pouco com esse seu sorriso no mundo, vó, porque basta imaginar e você atrai o
amor e a força que precisa pra seguir em frente.