(texto publicado também na Ornitorrinco http://www.ornitorrinco.net.br/2014/02/uma-escritora-na-terra-de-goethe.html)
Esse é um texto que não pretende chegar a lugar nenhum além de registrar um deslocamento geográfico. E se você, leitor, decidir seguir lendo, saiba também que tem um caráter metaliterário pois narra a história de uma autora que atravessa o oceano para lançar a versão alemã do seu primeiro romance. Na cidade de partida faz 35 graus e na de chegada, nenhum grau. Depois de um voo que atrasou 4 horas, pega mais 4 horas de ônibus para chegar ao interior de um país que não consegue falar mais do que 5 palavras na língua cheia de consoantes. Toma um goulash com cerveja e continua aceitando as cervejas que seu editor oferece dentro do ônibus que anda sobre a neve, troca impressões, piscando num cansaço que aumenta a cada gole da bebida. Chegam de madrugada e o frio corta cada centímetro da sua pele que não está dentro do sobretudo ou do cachecol ou da luva ou do gorro. Alcançam taxistas que conversam no meio da rua como se estivessem no verão carioca, e ela parece estar reclamando em vão. “I Follow Rivers” toca na rádio com uma melodia bem mais lenta da que conheceu um ano antes, como se o inverno não estimulasse baladas. Chegam a uma casa de madeira quentinha, sobem dois lances de escada que range e descobre que dormirá no sótão com vista para um pequeno cemitério e uma igrejinha onde o sino balada às 2h, 2:15, 2:30, 2:45 e 3 da manhã, até onde conseguiu acompanhar. Logo na entrada vê uma pilha de livros seus. São mil. Nunca viu suas palavras tão multiplicadas. E conhece as crianças e a rotina da casa e do casal. Faz compras no mercado, repara na quantidade de selo bio e toma um cano do jornalista alemão no primeiro dia, percebendo que os alemães podem ser bastante brasileiros nesse sentido. Está apaixonada pelo novo livro bilíngue, com uma capa dúbia com um desenho em xilogravura. E tudo é tão intensamente comemorado. Pisou na terra onde Goethe também pisou e que conserva placas dizendo “Goethe esteve por aqui”. Ou “Goethe esteve por aqui nunca”, onde a palavra nunca é escrita bem pequena, como um asterisco em peça publicitária. É enganada pelo menininho alemão loiro que pede pra ela abrir uma caixa de playmobil que estava escondida no sótão para ser seu presente de Natal. E ela abre com uma das colherinhas que acompanham o brigadeiro de colher que trouxe como lembrança do Brasil para a família. Não consegue usar uma palavra de todo o inglês que estudou. Eles preferem mesmo o alemão do qual ela não sabe pronunciar uma palavra. No outro lado do oceano, seu filho canta Katy Perry na festa de final de ano da escolinha para os avós. Torce para que tenham filmado e dorme com os olhos ardendo do cansaço e da fumaça do peixe preparado, da neve e do frio e de tantos estimulos visuais que ela tenta assimilar. Aprende que Tilapia é mesmo Tilapia em alemão. Registra cada sensação boa na alma porque talvez não aconteça nunca mais, ou demore demais para acontecer de novo ou aconteça sempre com cada livro novo que pretende lançar. Chega o dia da sua leitura na universidade e ela sente que pode suar muito, mesmo com aquele frio. Já conhece bem a cidade que pertencia à parte oriental da Alemanha, conhece os arredores e até o campo de concentração perto de Weimar, envolvido numa neblina densa de terror e culpa. Agora começa a ouvir trechos da sua história naquela língua bonita e estranha. E lê também em português, para 20 pessoas do Instituto de Romanística. É como se Alberta e Beta soubessem falar um alemão contemporâneo, cheio de gírias e palavrões. Treina dedicatórias em alemão, mas os estudantes querem mesmo é tentar ler em português. Fica feliz e envergonhada por não ter investido em aulas de alemão. Tudo termina bem, em Bratwurst e cerveja. E percebe que a gratidão que sente não consegue ser traduzida em nenhum idioma que conhece. Foi longe para um primeiro livro. Voltou e deixou lá suas personagens. Para mil leitores. Vielen Dank, Goethe!
Esse é um texto que não pretende chegar a lugar nenhum além de registrar um deslocamento geográfico. E se você, leitor, decidir seguir lendo, saiba também que tem um caráter metaliterário pois narra a história de uma autora que atravessa o oceano para lançar a versão alemã do seu primeiro romance. Na cidade de partida faz 35 graus e na de chegada, nenhum grau. Depois de um voo que atrasou 4 horas, pega mais 4 horas de ônibus para chegar ao interior de um país que não consegue falar mais do que 5 palavras na língua cheia de consoantes. Toma um goulash com cerveja e continua aceitando as cervejas que seu editor oferece dentro do ônibus que anda sobre a neve, troca impressões, piscando num cansaço que aumenta a cada gole da bebida. Chegam de madrugada e o frio corta cada centímetro da sua pele que não está dentro do sobretudo ou do cachecol ou da luva ou do gorro. Alcançam taxistas que conversam no meio da rua como se estivessem no verão carioca, e ela parece estar reclamando em vão. “I Follow Rivers” toca na rádio com uma melodia bem mais lenta da que conheceu um ano antes, como se o inverno não estimulasse baladas. Chegam a uma casa de madeira quentinha, sobem dois lances de escada que range e descobre que dormirá no sótão com vista para um pequeno cemitério e uma igrejinha onde o sino balada às 2h, 2:15, 2:30, 2:45 e 3 da manhã, até onde conseguiu acompanhar. Logo na entrada vê uma pilha de livros seus. São mil. Nunca viu suas palavras tão multiplicadas. E conhece as crianças e a rotina da casa e do casal. Faz compras no mercado, repara na quantidade de selo bio e toma um cano do jornalista alemão no primeiro dia, percebendo que os alemães podem ser bastante brasileiros nesse sentido. Está apaixonada pelo novo livro bilíngue, com uma capa dúbia com um desenho em xilogravura. E tudo é tão intensamente comemorado. Pisou na terra onde Goethe também pisou e que conserva placas dizendo “Goethe esteve por aqui”. Ou “Goethe esteve por aqui nunca”, onde a palavra nunca é escrita bem pequena, como um asterisco em peça publicitária. É enganada pelo menininho alemão loiro que pede pra ela abrir uma caixa de playmobil que estava escondida no sótão para ser seu presente de Natal. E ela abre com uma das colherinhas que acompanham o brigadeiro de colher que trouxe como lembrança do Brasil para a família. Não consegue usar uma palavra de todo o inglês que estudou. Eles preferem mesmo o alemão do qual ela não sabe pronunciar uma palavra. No outro lado do oceano, seu filho canta Katy Perry na festa de final de ano da escolinha para os avós. Torce para que tenham filmado e dorme com os olhos ardendo do cansaço e da fumaça do peixe preparado, da neve e do frio e de tantos estimulos visuais que ela tenta assimilar. Aprende que Tilapia é mesmo Tilapia em alemão. Registra cada sensação boa na alma porque talvez não aconteça nunca mais, ou demore demais para acontecer de novo ou aconteça sempre com cada livro novo que pretende lançar. Chega o dia da sua leitura na universidade e ela sente que pode suar muito, mesmo com aquele frio. Já conhece bem a cidade que pertencia à parte oriental da Alemanha, conhece os arredores e até o campo de concentração perto de Weimar, envolvido numa neblina densa de terror e culpa. Agora começa a ouvir trechos da sua história naquela língua bonita e estranha. E lê também em português, para 20 pessoas do Instituto de Romanística. É como se Alberta e Beta soubessem falar um alemão contemporâneo, cheio de gírias e palavrões. Treina dedicatórias em alemão, mas os estudantes querem mesmo é tentar ler em português. Fica feliz e envergonhada por não ter investido em aulas de alemão. Tudo termina bem, em Bratwurst e cerveja. E percebe que a gratidão que sente não consegue ser traduzida em nenhum idioma que conhece. Foi longe para um primeiro livro. Voltou e deixou lá suas personagens. Para mil leitores. Vielen Dank, Goethe!
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