20 de set. de 2016

Pulando amarelinha no Burning Man




Faço 40 no mesmo ano em que o festival faz 30.
Festival não, evento, como prefere dizer o seu fundador Larry Harvey. Ou “o maior playground adulto do mundo”, li no El País. “Algo que desafia você a sobreviver e se divertir, e ainda cria uma comunidade”.
E na tentativa de nomear o que aconteceu de mais significativo comigo lá, prefiro a aleatoriedade dos fatos, como num sonho, onde as cenas vem e vão, se repetem e me escapam. Sugiro que a leitura também não respeite uma ordem linear. Mas faça da forma em que você se sentir melhor, afinal, aprendi que existe uma distância enorme entre a ideia de que, sendo livre, você vai correr pelado no deserto e sua efetiva realização.

Equilibrando pratos
Esqueça a dica de levar uma câmera boa que quase todos os seus amigos recomendaram. Concentre-se em administrar o carro (caso ele seja sua cama por 7 dias) livre da poeira, lembrar de carregar sua água, gogles, lenço, protetor solar, fitinhas do Bonfim que você levou de gift e ainda pedalar sem cair da bike de 79 dólares aro 26 do Walmart, que parecia ser uma boa ideia quando você comprou online. Não tiro fotos tão bem assim para arriscar. Seu celular com o app do mapa do Black Rock Desert será mais útil caso você precise de um banheiro químico no meio de uma das dezenas de mini tempestades de areia que acontecem diariamente na Playa. Troquei minha câmera profissional pelo galão de vinagre que ganhamos de presente logo na entrada e funcionou milagrosamente para tirar a poeira fina das cutículas e cabelos. Um inglês razoável, inteligência espacial e iluminação de led também serão importantes para compensar o assoalho pélvico que termina o primeiro dia já em caquinhos.

Sabe aquela história de atenção plena?
Condições extremas servem principalmente para duas coisas: se irritar por sentir que nada está sob controle e se entregar. Sorte nossa foi que esse processo aconteceu rápido. Na verdade, planejamento e sorte, fifty-fifty sempre. Duas mulheres estrangeiras, dirigindo por oito horas numa estrada nunca percorrida, abastecendo e comendo o fast food mais saboroso da vida porque estavam famintas, chegando de madrugada e encontrando finalmente o camping fora da localização indicada. Intenso, cansativo e inédito. O primeiro “Bom Dia, Vietnã” a gente nunca esquece. Instantaneidade é a palavra mais adequada. Num evento que propõe zero rastro, ao escovar os dentes você cospe ou engole? Recolher tudo é um jeito de repensar cada lenço umedecido usado, até para limpar os banheiros químicos que você vai usar diariamente. Cada piscada de olho é feita com atenção e foco. Parece um grande esforço, mas quando você nota, não consegue tirar aquele sorrisinho bobo do rosto.

Singularidade, filho.
Em uma semana você terá visto mais pessoas diferentes do que num ano vivido no mundo default. Mesmo com o cabelo rosa e uma mala cheia de combinações improváveis como maiô e bota, me senti uma das mais caretas por lá. Mulheres fazendo acroyoga de calcinha, crianças sentando peladas nos balanços (com poeira fininha entrando em tudo) ou dançando cheias de led e seus earplugs na balada acompanhados dos pais às duas da manhã, casais combinando pijamas-macacões de pikachu, fantasias minimalistas de dia, peles pesadas à noite e muita gente bonita, nova, velha, gorda, super magra e pelada. Havia, inclusive, várias categorias dentro da categoria pelado: pelado pintado de gliter, pelado naturista, pelado sado-masô, pelado de botas. O exercício é saber até onde vai seu desapego. E como é bonito ver pessoas sendo o que elas são, vestindo (ou não) o que querem. No whastapp o mundo real tava gravado: “Que isso, mãe? Que cabelo é esse”? Da próxima vez carrego esse menino para o deserto comigo.

Acredite, você vai sair de lá devendo.
E não é dinheiro, já que tudo lá é de graça. Imagine quanto vale um gole de vinho rosé, um guarda-sol japonês de papel e três sanduíches de queijo, picles e mostarda no meio do deserto, depois de pedalar por horas seguidas? Some na conta uma máscara facial com óleos essenciais, uva mergulhada no gelo, cookies quentinhos, sombra, cerveja gelada e uma leitura espiritual para terminar. Até os mais duros sairiam chorando depois de um dia assim. “Será Magia, Milagre, Miragem. Será mistério”. Teve mojitos (no DeepMentha) e água em garrafas de Energy, Wicked e Love, servidas em shots por mini-burners destemidos. Teve meio boeing 747 em que você pode pilotar até onde sua imaginação quiser. Balançar enquanto tocam violão para você, ouvir num cello “I got so much love, but I don’t know what to do with it, I got so much love, well I guess I’d better share it with the world”. Compartilhar tudo o que você tem no deserto com quem você nunca viu na vida. E sair de lá com muito mais do que levou.

Meditando sob o pó.
O templo, construído onde começa a deep playa, parece estar a alguns degraus abaixo da superfície. Humanos sendo humanos e chorando alto ao lembrar de seus mortos. Muitos objetos para serem queimados junto com aquela estrutura enorme de madeira. Vestidos de noiva, fotos gigantes, mensagens enchendo as paredes com línguas esquisitas, cartas, uma flauta indígena repetindo uma mantra, mais soluços. Outra vez a poeira invadiu os olhos. A impermanência ainda é um conceito tão complicado. Bora pedalar para longe da dor e da saudade. Seguimos o primeiro redemoinho de volta à playa, ao sol escaldante e alcançamos um carro mutante disfarçado de dragão dourado, soltando fogo por onde passava. Nós, nascidas no ano do dragão, celebrando nosso rito de passagem, sentimos o calor das chamas na nuca. Mais adiante, uma moldura com 92 rosas feitas por um artista para sua abuela Rosa Amélia, recém-falecida. Arte e fogo, desde sempre, maneiras de transformar o que não conseguimos lidar.

Você tem fome de quê?
Uma semana de consciência sobre o que comemos, quanta água bebemos, o quanto precisamos de banho ou de um banheiro limpinho, o quanto trazemos de lixo, como sobrevivemos com muito menos e tchan-tchan-rã-ram: o quanto precisamos de conexão com o outro. Ficamos num camping de brasileiros que trabalharam duro e felizes no seu Projeto Mangueira. Também ajudamos um camping vizinho, misto de pista de kart elétrico (com direito a test-drive insano) e num bar-instalação chamado Neurosis (um domo enorme com esferas de energia estática), andamos de patins (de mãos dadas) com black music, recolhemos moop que voava pela areia (matter out of place), pulamos numa cama elástica no meio do nada, tiramos fotos incríveis (principalmnete com o coração), aprendemos contact dance, tomamos vinho no teto de um motorhome (e consertamos a clarabóia que quebrei com silvertape), filei churrasco de uns vizinhos gaúchos, aprendi mais nomes de drogas em inglês do que sei em português, cantamos “Seres vivos da Floresta” pros gringos, ouvimos os DJs mais incríveis do mundo sem saber o nome deles, lemos o BRC Weekly, assistimos acroyoga, compramos (yes!) iced chai geladinho, recebemos amigos (um por vez) para mini-entrevistas-talk-show enquanto almoçavamos no carro (“thousand times” mais limpo que o dos eslovenos), ganhamos um bottom com a areia do deserto, tomamos sopa de cenoura no café da manhã quando acabou a comida (mas sobrou gim tônica), lavamos o cabelo com vinagre na pia do nosso RV e assistimos o homem de madeira, símbolo do evento, queimar junto com 70 mil pessoas celebrando a vida e os valores que compartilhamos durante esse tempo. Havia outras baladas ainda mais incríveis de saideira. Mas terminamos a noite comendo arroz-feijão (com alho e cebola!) e hambúrguer vegano no motorhome de nossos novos amigos. Dia seguinte, chamado êxodo, na rádio do evento tocava uma música eletrônica em português: “Eu me sinto completamente contente”.





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