20 de dez. de 2018

Meu Conto de Natal



Quando a leitoa do vizinho começa a gritar feito criança, antevendo que vai entrar na faca, você já está acordada faz tempo, degolando e depenando as três melhores galinhas que engordou para o Natal de 88. Seus netos aparecem na cozinha com cara de sono, reclamando do cheiro de penugem queimada, enquanto você passa a última vítima da ceia no bico do fogão aceso em chama baixa, que é para fechar bem os poros, como sua mãe e sua avó sempre fizeram. O leite com Nescau das crianças já está pronto porque você diz que não tem nada mais descabido do que ficar abrindo e fechando tanto a geladeira nesse calor.

Você gosta de trabalhar ouvindo uma música chamada “José”, cantada pela Rita Lee no volume máximo da vitrolinha vermelha Belair, cheia de poeira vermelha da cidade quente do interior de São Paulo, onde todos aqueles netos nasceram. Vitrola essa que vai virar herança para sua neta do meio, quando for peça hipster. Já o disquinho, se perderá no tempo e ela recorrerá ao YouTube para lembrar a letra da sua música preferida e se esforçar para escrever um conto de Natal bonito, sem ser piegas.

Todo dezembro você recebe os pestinhas para passar o mês azucrinando, descendo mil vezes a rampa da garagem sentados no tapete, escorregando de barriga no chão toda vez que você vai lavar a área com a mangueira (e a água pelando por causa do sol quente), escalando as mangueiras da Dona Alice (árvores) para chupar a fruta (quente também), pulando elástico, tomando sorvete na Dona Odete, rindo dos pôsteres de mulher pelada da borracharia da rua, entrando em casa com os pés vermelhos de uma sujeira que só sai da unha com escovinha.

Você finge que não gosta que eles se divirtam, esbraveja, mas solta uma risada no meio das broncas, perdendo toda a moral. Quando suas filhas e genros chegam para o Natal, descobrem seu lado coruja no relato de tudo o que as crianças fizeram. Conta com orgulho como ensinou as meninas a quararem as calcinhas no quintal para secar direito e evitar as bactérias. Como incentivou as idas à biblioteca pública de “bici” (também para não precisar comprar os caros Almanaques de Férias da Turma da Mônica). E como levou os três, de banho tomado, à novena na casa das velhas (e ensinou que é feio ficar de risadinhas).

O papo na mesa de Natal é sempre animado e assim as crianças vão guardando as lembranças das férias na avó. Tipo a sodinha com um furo na tampa para a criançada “mamar” e o refrigerante durar mais. Você na cozinha amassando, enrolando e fritando aqueles canudinhos salgados de rechear com patê no Natal e escondendo tudo num saco em cima da geladeira, onde os netos não alcançam. O cadeado que você bota no telefone para esses pestes não ficarem toda hora ligando por interurbano para São Paulo e para Santos. As agulhas e novelos de tricô, para ver se eles ficam com as mãos ocupadas e param de abrir tanto a geladeira no calor. A cota de uma caixa de bis para cada um, para durar as férias inteiras, e os envelopes de borda verde e amarela com dinheiro que o avô dá no Natal.

Um mês inteiro de preparação de uma noite especial, começando com a montagem do mesmo pinheirinho fake de Natal, com cada vez menos bolas porque eram daquelas que caíam e quebravam em mil caquinhos. Conforme as crianças cresciam, ficava mais difícil esconder os presentes e os canudinhos fritos deles. Passaram a tentar descobrir quem se vestia de papai Noel e a questionar a importância da Missa do Galo que começava à meia-noite. Ficou longe a cidade, a meninada preferia a praia, onde os amigos tinham casa. Dezembro pareceu vazio sem tantos preparativos. Melhor comprar um frango pronto, se for só para você e o avô, né?

Os netos viraram pais, não tão rápido quanto saíram da infância, e o Natal virou um negócio que gera milhões de embalagens de presente para serem descartadas no planeta onde já não cabe mais nada. Nem mesmo você e o vô, que pena. Sua vitrolinha foi restaurada e ainda cabe em jantares para amigos queridos. E esse vento quente de dezembro, traz a saudade de mergulhar de barriga no ladrinho vermelho molhado, mesmo 30 anos depois. Mas moro em apartamento e a única saída que tenho é ir para frente da geladeira, escancarar bem a porta e sentir o vaporzinho gelado saindo lá de dentro. Sorrio só de imaginar você contrariada. Acha que tem cabimento isso, vó?

19 de fev. de 2018

Sonho de uma Tarde de Carnaval



 
Já na concentração, encontraram um ruivo nanico, de saia escocesa com bermuda por baixo e disseram que ele estragou a fantasia delas. Ele valorizava demais seus genes e se recusou a beijar Amelie, alegando que tinha namorada. Não é não! Mas Rita usou a sua varinha rock n’ roll de apagar memória e o ruivo esqueceu fácil que era comprometido. Amelie borrou seu batom vermelho e ganhou uma herpes, mas saiu aliviada. Só faltavam 2 beijos para tirar a zica. O sol brilhava entre as nuvens e crianças com carinha de anjo soltavam bolhinhas de sabão sob os ombros de dezenas de pais barbudos com seus óculos espelhados. Ao lado deles, de mãos dadas quase sempre, parceiras hipsters-veganas exibiam muita pele bronzeada sob um make colorido de glitter biodegradável. Havia catadores de latinha a rodo que não deixavam acumular o lixo nas calçadas e os restaurantes permaneciam abertos, sem medo da muvuca.
 
Rita perdeu sua tiara de penas coloridas e aceitou uma cartola alta de um gatinho trôpego que miou algo ininteligível no seu ouvido três vezes. Sempre quis desfilar com cartola, mas não desconfiou de que aquela estava amaldiçoada. A partir desse momento, o céu nublou e mil ratinhos saíram dos bueiros (de banho tomado) para cantar as marchinhas. Parecia estranho mas ainda estava animado. Compraram batata chips oleosa de dez reais pra almoçar e descobriram que a mistura mel, catuaba, cerveja e chips podia ser um veneno pro fígado. Só uma pipoca doce de ontem pra desfazer o mal-estar e deixar a língua rosa. Não por muito tempo. Estavam tocando os instrumentos dos músicos quando perceberam os ratinhos roendo as cordas que agrupava o pessoal. Daí em diante, um vento do Largo da Batata invadiu tudo.
 
Fotógrafos caíram do carro de som, o motorista desgovernou e, um por um, cada folião começou a vomitar catuaba com cerveja e sabe-se lá mais o quê nas sarjetas. Os catadores resolveram debandar pra outro bloco grã-fino. Quem ficou na garoa que começava a engrossar (mas ainda refrescava), sentiu que enfeiava, suado e passado. Loiras de mechas californianas gritavam, tentando em vão proteger a chapinha. Os abelhinhas, ao se reconhecerem varizentos e flácidos, choravam. Fiscais do Dória sorriam com seus dentes amarelados multando os mijões e os vizinhos que antes aplaudiam o Carnaval, agora jogavam seus tomates das janelas. Veio então uma chuva grossa de verão que não escoava nos bueiros entupidos e as pessoas se estapeavam para ver quem entrava primeiro na ambulância, a única chance de sair rápido dali.
 
Amelie aproveitou que Rita estava na fila do banheiro da padaria que cobrava dois reais pelo xixi e negociou um selinho com uma drag queen de peruca ruiva, de maquiagem borrada e ensopada de chuva, rezando para aquilo contar como um segundo beijo. O dono da padaria colocou todos para fora, fechando as portas quando começaram a quebrar tudo para roubar os cigarros do caixa, num arrastão bêbado. Rita se mijou de medo. Do lado de fora, pessoas eram carregadas em meio à lama de chuva, mijo, lixo e vômito, numa massa de gente suvaquenta e meio zumbi que não andava, nem dava passagem. Alguém ligou um funk alto e o refrão doeu os ouvidos. “Chacoalha minha benga. Puta. Vadia e Prostituta”. A classe escorreu, de vez, bueiro abaixo. Era impossível não ser meio abusada ali no meio ou não sair machucado das brigas que pipocavam em todos os cantos. Houve quem aproveitou a confusão pra realizar o fetiche de transar com platéia. Hoje está tudo postado nas redes sociais com a hashtag #mefodinopasmado.
 
Ritaleena e Amelie Pulando nadaram um pouco  no chorume e depois correram o máximo que as bolhas nos pés permitiram até a Mercearia, largando a cartola numa das sarjetas da Vila e procurando um bom livro onde pudessem se esconder. Refeitas e quase secas, viram sua sorte voltar numa mesa onde um conhecido músico ruivo, autor de “Por onde andei”, bebia com os amigos.


23 de mai. de 2017

Quero inteiro, não pela metade



Você não é minha prioridade, nem eu a sua.
Começamos mal, mas deixamos as circunstâncias nos levar.
Não sei nada de tecnologia e você não sabia quem era Woody Allen.
Mas tentávamos nos encontrar em assuntos comuns, viagens, esporte, família.
Tentei me afastar, te achei desinteressado, você se disse apenas avoado.
Deu saudade e voltamos, o tempo foi passando leve, tinha a paixão pra segurar.
Se dava 80% certo, bora empurrar os outros 20 pra debaixo do tapete.
Fingir que não aconteceu a briga, para acordar de boa no dia seguinte.
Eu disse que não ia cuidar de você, mas é da minha natureza.
Você mostrou que estava se esforçando porque não era da sua natureza.
Foi um 2016 bacana. Para dias de folga, namorado, eu brincava.
Nos dias mais puxados não estávamos juntos pra não desgastar.
Pavios curtos. Gênios fortes. Namoro meio adolescente.
Era frágil e eu sabia, mas você achava que eu tava sendo pessimista.
Se me conhecesse bem, saberia o quanto sou otimista.
I love you, but not all the time. E parecia suficiente pra nós dois.
Mas você precisou de uma brecha pequena pra voar.
E eu precisei saber disso de um jeito Almodovar, como sempre.
Avoado ou desinteressado, acabou ali. Pra mim, um final analógico como você.
Diálogos intermináveis e nunca ditos, na minha cabeça de humanas.
Textos que você não entende, mesmo lendo devagar. Ok seu como resposta.
Tô velha pra grandes ilusões, mas a surpresa foi sair machucada.
Devia ter desconfiado de que meio amor nunca é suficiente.

22 de fev. de 2017

Último texto pro site Confeitaria.mag

Não à toa é um texto sobre tempo e viagem, que tiro de lá antes do site sair do ar.
Mas não há tristeza porque agora a Fabi embarcou outro projeto lindo chamado Deriva, que já nasceu cheio de gente talentosa. Quem sabe um dia um texto meu também não apareça por aquelas águas ;)))
Vida longa ao Deriva! www.derivaderiva.com

FÉRIAS NÃO É LUGAR DE DORMIR


O telefone do resort toca. Hora de levantar para o passeio de barco com o marinheiro-dono-da-agência-de-viagens. Passariam o dia no mar, visitando ilhotas ao redor de Split, que pudessem servir de locação para os personagens do seu novo livro. Encontraria Komiza, um vilarejo da ilha de Vis, com menos de dois mil habitantes e casas construídas sobre as águas como a vizinha Veneza, espremida entre uma cadeia de montanhas e um charme inegável. “Que outra cidade uma fotógrafa escolheria?”. Abriu as cortinas para que a vista do mar terminasse de acordá-la. O sol ainda brilhava tímido e, talvez por isso, saiu para o dia sem protetor.

Lessa, o gato que veio junto com o apartamento alugado em Genebra, miava longo e arranhava a porta do quarto. “Já não me basta um menino, agora esse gato”, pensou alto ao notar o chão do corredor e da cozinha brancos, coberto das pedrinhas destinadas ao toalete do bichano, que Lessa fez questão de espalhar enquanto destruía/brincava com o saco preto em que elas estavam, devidamente guardadas num armário sem chave. Varreu tudo para um canto antes de fazer ovos mexidos. Estava ali investigando como seu personagem viveria num apartamento central de Genebra. Sairia com informações preciosas e uma alergia que espalhou bolhas por seu rosto, colo e braços e demorou muitas doses de corticóide para passar.

Manhã e noite em Copenhagen não tinham diferença para eles. Dormiam antes da meia-noite e estava claro como estaria no despertar do dia seguinte. “Parece que tiramos uma soneca”, me dizia ele, sempre com sono e duvidando do que as horas mostravam. Nenhum sinal do frio típico, era um desses verões implacáveis, 28 graus, sem vento. Como se arrastássemos o sol conosco, a cada cidade que incluíamos na viagem. Provamos o pão de centeio com geléia de laranja e uma barra de chocolate amargo fininha, ou com patê de peixe e um molho que mistura mostarda, maionese, picles e anchovas chamado rémoulade. Saímos dizendo “tak”, como a criança brasileira-dinamarquesa que conhecemos, agradecidos pela calorosa hospedagem.

Acordar em Paraty é sempre difícil. Não há como descansar de dia, graças à intensa programação da Flip, as tendas, os bate-papos paralelos, os cafés gratuitos do IMS, os livros novos para carregar nas ruinhas irregulares. Não dá para dormir cedo por causa das festas, dos bares, dos encontros, palestras, coquetéis, caipirinhas e da maravilhosa comida do Thai e do Banana da Terra. O despertar é sofrido, mesmo estando hospedadas numa pousada em que o Sílvio de Abreu e o Nelson Motta tomam café do seu lado. “E que pão de queijo é esse?”, digo levantando novamente para encher meu pratinho. É garantia de voltar ano a ano e fantasiarmos nós daqui a 30, com 67 anos, tão elegantes e cultas quanto as velhinhas na fila de entrada da tenda principal.


* Imagem: ilustração de Anne Laval

20 de set. de 2016

Pulando amarelinha no Burning Man




Faço 40 no mesmo ano em que o festival faz 30.
Festival não, evento, como prefere dizer o seu fundador Larry Harvey. Ou “o maior playground adulto do mundo”, li no El País. “Algo que desafia você a sobreviver e se divertir, e ainda cria uma comunidade”.
E na tentativa de nomear o que aconteceu de mais significativo comigo lá, prefiro a aleatoriedade dos fatos, como num sonho, onde as cenas vem e vão, se repetem e me escapam. Sugiro que a leitura também não respeite uma ordem linear. Mas faça da forma em que você se sentir melhor, afinal, aprendi que existe uma distância enorme entre a ideia de que, sendo livre, você vai correr pelado no deserto e sua efetiva realização.

Equilibrando pratos
Esqueça a dica de levar uma câmera boa que quase todos os seus amigos recomendaram. Concentre-se em administrar o carro (caso ele seja sua cama por 7 dias) livre da poeira, lembrar de carregar sua água, gogles, lenço, protetor solar, fitinhas do Bonfim que você levou de gift e ainda pedalar sem cair da bike de 79 dólares aro 26 do Walmart, que parecia ser uma boa ideia quando você comprou online. Não tiro fotos tão bem assim para arriscar. Seu celular com o app do mapa do Black Rock Desert será mais útil caso você precise de um banheiro químico no meio de uma das dezenas de mini tempestades de areia que acontecem diariamente na Playa. Troquei minha câmera profissional pelo galão de vinagre que ganhamos de presente logo na entrada e funcionou milagrosamente para tirar a poeira fina das cutículas e cabelos. Um inglês razoável, inteligência espacial e iluminação de led também serão importantes para compensar o assoalho pélvico que termina o primeiro dia já em caquinhos.

Sabe aquela história de atenção plena?
Condições extremas servem principalmente para duas coisas: se irritar por sentir que nada está sob controle e se entregar. Sorte nossa foi que esse processo aconteceu rápido. Na verdade, planejamento e sorte, fifty-fifty sempre. Duas mulheres estrangeiras, dirigindo por oito horas numa estrada nunca percorrida, abastecendo e comendo o fast food mais saboroso da vida porque estavam famintas, chegando de madrugada e encontrando finalmente o camping fora da localização indicada. Intenso, cansativo e inédito. O primeiro “Bom Dia, Vietnã” a gente nunca esquece. Instantaneidade é a palavra mais adequada. Num evento que propõe zero rastro, ao escovar os dentes você cospe ou engole? Recolher tudo é um jeito de repensar cada lenço umedecido usado, até para limpar os banheiros químicos que você vai usar diariamente. Cada piscada de olho é feita com atenção e foco. Parece um grande esforço, mas quando você nota, não consegue tirar aquele sorrisinho bobo do rosto.

Singularidade, filho.
Em uma semana você terá visto mais pessoas diferentes do que num ano vivido no mundo default. Mesmo com o cabelo rosa e uma mala cheia de combinações improváveis como maiô e bota, me senti uma das mais caretas por lá. Mulheres fazendo acroyoga de calcinha, crianças sentando peladas nos balanços (com poeira fininha entrando em tudo) ou dançando cheias de led e seus earplugs na balada acompanhados dos pais às duas da manhã, casais combinando pijamas-macacões de pikachu, fantasias minimalistas de dia, peles pesadas à noite e muita gente bonita, nova, velha, gorda, super magra e pelada. Havia, inclusive, várias categorias dentro da categoria pelado: pelado pintado de gliter, pelado naturista, pelado sado-masô, pelado de botas. O exercício é saber até onde vai seu desapego. E como é bonito ver pessoas sendo o que elas são, vestindo (ou não) o que querem. No whastapp o mundo real tava gravado: “Que isso, mãe? Que cabelo é esse”? Da próxima vez carrego esse menino para o deserto comigo.

Acredite, você vai sair de lá devendo.
E não é dinheiro, já que tudo lá é de graça. Imagine quanto vale um gole de vinho rosé, um guarda-sol japonês de papel e três sanduíches de queijo, picles e mostarda no meio do deserto, depois de pedalar por horas seguidas? Some na conta uma máscara facial com óleos essenciais, uva mergulhada no gelo, cookies quentinhos, sombra, cerveja gelada e uma leitura espiritual para terminar. Até os mais duros sairiam chorando depois de um dia assim. “Será Magia, Milagre, Miragem. Será mistério”. Teve mojitos (no DeepMentha) e água em garrafas de Energy, Wicked e Love, servidas em shots por mini-burners destemidos. Teve meio boeing 747 em que você pode pilotar até onde sua imaginação quiser. Balançar enquanto tocam violão para você, ouvir num cello “I got so much love, but I don’t know what to do with it, I got so much love, well I guess I’d better share it with the world”. Compartilhar tudo o que você tem no deserto com quem você nunca viu na vida. E sair de lá com muito mais do que levou.

Meditando sob o pó.
O templo, construído onde começa a deep playa, parece estar a alguns degraus abaixo da superfície. Humanos sendo humanos e chorando alto ao lembrar de seus mortos. Muitos objetos para serem queimados junto com aquela estrutura enorme de madeira. Vestidos de noiva, fotos gigantes, mensagens enchendo as paredes com línguas esquisitas, cartas, uma flauta indígena repetindo uma mantra, mais soluços. Outra vez a poeira invadiu os olhos. A impermanência ainda é um conceito tão complicado. Bora pedalar para longe da dor e da saudade. Seguimos o primeiro redemoinho de volta à playa, ao sol escaldante e alcançamos um carro mutante disfarçado de dragão dourado, soltando fogo por onde passava. Nós, nascidas no ano do dragão, celebrando nosso rito de passagem, sentimos o calor das chamas na nuca. Mais adiante, uma moldura com 92 rosas feitas por um artista para sua abuela Rosa Amélia, recém-falecida. Arte e fogo, desde sempre, maneiras de transformar o que não conseguimos lidar.

Você tem fome de quê?
Uma semana de consciência sobre o que comemos, quanta água bebemos, o quanto precisamos de banho ou de um banheiro limpinho, o quanto trazemos de lixo, como sobrevivemos com muito menos e tchan-tchan-rã-ram: o quanto precisamos de conexão com o outro. Ficamos num camping de brasileiros que trabalharam duro e felizes no seu Projeto Mangueira. Também ajudamos um camping vizinho, misto de pista de kart elétrico (com direito a test-drive insano) e num bar-instalação chamado Neurosis (um domo enorme com esferas de energia estática), andamos de patins (de mãos dadas) com black music, recolhemos moop que voava pela areia (matter out of place), pulamos numa cama elástica no meio do nada, tiramos fotos incríveis (principalmnete com o coração), aprendemos contact dance, tomamos vinho no teto de um motorhome (e consertamos a clarabóia que quebrei com silvertape), filei churrasco de uns vizinhos gaúchos, aprendi mais nomes de drogas em inglês do que sei em português, cantamos “Seres vivos da Floresta” pros gringos, ouvimos os DJs mais incríveis do mundo sem saber o nome deles, lemos o BRC Weekly, assistimos acroyoga, compramos (yes!) iced chai geladinho, recebemos amigos (um por vez) para mini-entrevistas-talk-show enquanto almoçavamos no carro (“thousand times” mais limpo que o dos eslovenos), ganhamos um bottom com a areia do deserto, tomamos sopa de cenoura no café da manhã quando acabou a comida (mas sobrou gim tônica), lavamos o cabelo com vinagre na pia do nosso RV e assistimos o homem de madeira, símbolo do evento, queimar junto com 70 mil pessoas celebrando a vida e os valores que compartilhamos durante esse tempo. Havia outras baladas ainda mais incríveis de saideira. Mas terminamos a noite comendo arroz-feijão (com alho e cebola!) e hambúrguer vegano no motorhome de nossos novos amigos. Dia seguinte, chamado êxodo, na rádio do evento tocava uma música eletrônica em português: “Eu me sinto completamente contente”.





2 de ago. de 2016

Ah, vó.



Desde ontem me demoro nessa foto de família. Ali no meio estão meus avós, cercados de um tio e a tia caçula de um lado, a tia mais velha e minha mãe de outro. Todos riem, minha avó esconde os dentes. Meu avô é o único fantasma da foto. Minha avó queria ter sido (ido) antes, mas o danado era ariano e passou na frente.

Desde hoje de manhã, ela cansou de brincar sem par e se escondeu do mundo. Se afundou nas memórias, nos rancores, nas vozes de personagens e histórias do passado. Nem reconhece o presente, nem encontra forças para andar pra frente, nem que seja em pensamento, já que fisicamente não o faz sozinha há mais de 10 anos.

Desde pequena carrego um pedaço desse poço fundo que é a minha avó comigo. Sempre preferi meu avô, mais bonzinho e ativo, menos intenso. Luto bastante contra o inverno, a melancolia e a intensidade com que encaro as experiências que a vida me oferece. Chamo meu filho de dramático, mas ele tem a quem puxar.

Desde adolescente escondo minha avó na escrita. Era ela nos diários chorosos, nas redações piegas para agradar professoras, nas tentativas poéticas frustradas, nos contos com crianças, na dupla personalidade da Beta e até na carência dos personagens masculinos do segundo livro. Procure de perto, não sei esconder bem.


Desde que minha mãe me ligou da casa da minha avó, tento pensar em como trazer ela à tona. Ela é pesada e o poço é quentinho, que bem sei. Sugeri cócegas e beliscões, mas ela continua catatônica. Penso se eu, que tanto sei entrar e sair dele, não devia ir até lá procurar a sua mão. Lá onde, cara pálida? Bem podia existir um skype emocional para conectar o meu poço com o dela, por um número que estivesse na cadeia do nosso DNA. Você pisca o olho se receber o meu sinal, vó, e eu prometo dizer só coisas boas? Posso cantar um pouco a música de Maria, que saía da vitrolinha vermelha enquanto você lavava o quintal com a vassoura de piaçava: “Olhe o que foi meu bom José, se apaixonar, pela donzela...” Ou recitar a primeira palavra que você me ouviu dizer e não se cansava de contar: “Batauta”. Te contar que meu filho está fazendo tricô e perdendo os pontos como eu perdia quando tinha 10 anos e passava as férias em Chavantes. Dizer que lembro de você toda vez que como um bis porque cada neto seu ganhava uma caixa e a recomendação de comer com calma para durar bastante. Eu bem tentava, vó, mas o Brê e a Gabi comiam os deles e os meus. Evocar o aroma dos scones que você fritava e escondia para o Natal, ou das galinhas que depenava e passava no fogão, credo. Confessar que roubei as cartas de amor que meu avó mandou para você no noivado e estavam guardadas dentro de uma latinha de biscoitos enferrujada e que são lindas de chorar e respeitosas e feitas de um amor que eu nunca encontrei na vida. E dizer obrigada por esse caldo emocional, pegajoso, brega, chato e criativo que herdei de você. Fica mais um pouco com esse seu sorriso no mundo, vó, porque basta imaginar e você atrai o amor e a força que precisa pra seguir em frente.